INTRODUÇÃO

Remifentanil, derivado do fentanil, é um opióide que apresenta característica singular; seu metabolismo por esterases não específicas resulta em depuração plasmática rápida e uniforme, o que confere a este agente previsibilidade acurada de início e término de ação. O rápido início de ação e curta meia-vida, independente do tempo de infusão, fazem do remifentanil opção interessante de analgésico para uso em anestesia geral balanceada, anestesia venosa total (TIVA: total venous anesthesia) ou sedação. Estas características têm permitido o uso deste agente em ampla variedade de procedimentos anestésicos, que variam desde sedação, anestesia regional, realizadas em hospital-dia, incluindo até as operações de maior parte, destacando-se a cirurgia cardíaca e a neurocirurgia. Quanto ao potencial de utilização em UTI, os relatos mostram o uso do remifentanil, na sedação de pacientes no pós-operatório de neurocirurgia e cardiotorácica. Neste cenário, o fármaco, a par de proporcionar excelente analgesia, sem comprometer a estabilidade hemodinâmica interessante no pós-operatório de cirurgia cardíaca, previne picos de hipertensão intracraniana e também permite rápida emergência da sedação, com retorno do drive respiratório e estado mental, o que é importante na avaliação clínica e neurológica específica.(1)

FARMACOLOGIA

Remifentanil é seletivo para receptores
µ-agonistas com menor intensidade para delta e kappa receptores, demonstrando efeitos típicos desta classe de fármacos, que incluem analgesia, depressão respiratória e bradicardia, sendo competitivamente antagonizado pela naloxona.(2) O remifentanil tem sua configuração molecular muito similar aos outros derivados da piperidina, mas destaca-se por portar pontes de éster que fazem seu metabolismo ser muito suscetível a degradação por esterases não específicas no sangue e em outros tecidos. Sua meia-vida de eliminação (t/1/2 β) é aproximadamente de dez minutos, sendo degradado como descrito em um metabólito inativo, ácido carboxílico, excretado em 88% pela urina. Durante a fase hipotérmica do by-pass cardiopulmonar, a depuração do remifentanil é reduzida em 20%. Quanto à idade, entre zero e 18 anos, com correção para o peso ideal não existe diferença entre o volume de distribuição e metabolismo da droga, bem como em relação ao sexo. Entretanto, em pessoas acima de 65 anos é necessária a redução de 50% da dose inicial do remifentanil e das subseqüentes. Também em obesos os parâmetros farmacocinéticos do remifentanil são reduzidos em um terço. A diminuição da dose deverá ser feita de acordo com o peso ideal.(3)

Remifentanil intravenoso exibe um perfil linear plasmático dose-dependente, em voluntários e em pacientes cirúrgicos. A droga é absorvida rapidamente, liga-se em 70% às proteínas e distribuí-se pelos tecidos. Cruza rapidamente a barreira hematoencefálica e placentária, sendo facilmente redistribuída e metabolizada pelo recém-nascido. O metabolismo do remifentanil feito pelas esterases torna sua farmacocinética independente da falência orgânica; portanto, segue as doses inalteradas em pacientes com falência hepática e renal documentadas.(4,5) Os portadores de doença hepática mais avançada são mais sensíveis aos opióides em geral, menores concentrações destes agentes produzem supressão de 50% do volume-minuto nestes casos, quando comparados à população geral. Assim, a recomendação quanto ao remifentanil nestas situações é a redução da dose, mas a remissão do efeito após o término da infusão é semelhante aos pacientes portadores de função hepática normal. Outro aspecto é em relação à excreção renal do metabólito do remifentanil em renais crônicos, fato que determina acúmulo plasmático desta substância. Como a potência deste metabólito é muito fraca, mesmo em infusões por 24 horas em renais crônicos, não foram observadas concentrações plasmáticas relevantes deste subproduto.(2) Quanto ao seu uso no neuroeixo, em aplicações na raqui ou epidural, as formulações do remifentanil, por conterem glicina, não devem ser usadas.

EFICÁCIA TERAPÊUTICA E TOLERÂNCIA

Comparado com outros opióides de uso corrente, a duração de ação do remifentanil, alfentanil, fentanil e morfina foi de 3 a 10, 5 a 20, 20 a 30 e 180 a 240 minutos, respectivamente, em pacientes adultos.(6) Os pacientes que recebem remifentanil apresentam o mesmo padrão de resposta com analgesia efetiva e atenuação da resposta adrenérgica, independente da idade (faixa pediátrica a idosa), peso corporal, grau de disfunção hepática ou renal, e tipo ou duração da cirurgia, independente da associação com outros agentes venosos ou inalatórios.

A eficácia do remifentanil intravenoso, durante a indução e manutenção da anestesia para pacientes internados e em cirurgias ambulatoriais, tem sido avaliada em vários estudos clínicos, prospectivos, randomizados, alguns multicêntricos e controlados, cuja maioria foi publicada na íntegra. A dose habitual da remifentanil, na maior parte dos trabalhos, é de 1 µ/kg em bolus para indução, seguida de 0,5 µ/kg/min para manutenção. Mas existem protocolos relatados com doses de até 2 µ/kg para a indução e de 0,25 a 1 µ/kg/min para manutenção. Na maioria dos estudos os pacientes tinham classificação ASA de I a III.(3) Conforme as publicações, os pacientes que receberam remifentanil, quando comparado a outros agentes opióides, apresentaram analgesia efetiva e atenuação da resposta autonômica, hemodinâmica e metabólica intra-operatória independente da idade, peso corporal, grau de função hepática, tipo e duração da cirurgia. Entretanto, destaca-se dos demais opióides pelo início rápido e pronta recuperação do drive respiratório, independente do tempo de infusão, tornando-o muito interessante em muitas situações da prática diária da anestesia. Deve-se, por outro lado, estar atento para que os efeitos almejados de pronto retorno da consciência e ventilação, inerentes à farmacocinética do remifentanil, não estarem mascarados por efeito residual de relaxantes musculares, benzodiazepínico e outros fármacos de eliminação prolongada possíveis de serem utilizados em anestesia.

Sua segurança foi demonstrada em um dos maiores estudos multicêntricos realizados, envolvendo 2.348 pacientes. Os efeitos adversos mais comuns relacionados a remifentanil e que ocorreram em 2% dos pacientes, quer na indução ou manutenção foram: hipotensão, hipertensão e bradicardia.(7) Outros efeitos adversos, como rigidez muscular, náuseas e vômitos, tremores no despertar, atinentes aos agentes agonistas específicos ao receptor opióide μ, também foram descritos com o uso da remifentanil. Estes efeitos relatados, incluindo os mais sérios, como rigidez torácica, bradicardia e hipotensão ou apnéia, não diferiram significativamente cotejando-se o remifentanil com outros opióides. Um estudo relata serem mais pronunciados os efeitos cardiovasculares, bradicardia e hipotensão relacionados ao remifentanil comparado ao alfentanil.(8) Todos os efeitos adversos, incluindo estes últimos, mencionados foram completamente resolvidos ao descontinuar-se o agente ou reduzir a dose de infusão. O remifentanil também não leva a liberação de histamina em doses de até 5 μg/kg/min, o que interessa em muitas situações clínicas com história de alergia.(9)

USO CLÍNICO

O remifentanil tem sido utilizado na anestesia em praticamente todas as especialidades cirúrgicas.(10) Grupos especiais de pacientes, como neonatos, idosos, obesos mórbidos, com insuficiência renal e hepática, também receberam remifentanil associado a diferentes agentes, mostrando excelente tolerabilidade. Remifentanil atenua a resposta hemodinâmica à intubação endotraqueal e em combinação com o propofol permite o acesso à traquéia sem a associação de relaxante muscular.(11) O fato de não apresentar efeito clinicamente relevante na pressão intra-ocular ou intracraniana, bem como no fluxo sangüíneo cerebral e na reatividade cerebrovascular ao gás carbônico, torna este agente uma opção interessante para cirurgia oftalmológica e neurocirúrgica, pois rápida emergência da anestesia é crucial em muitos procedimentos neurocirúrgicos, para permitir avaliação detalhada do status funcional cerebral. Em estudo multicêntrico em pacientes com cirurgia intracraniana cotejando-se fentanil e remifentanil, ambos o grupos foram comparáveis em relação à resposta adrenérgica em alguns pontos determinados, como momento da intubação, incisão da pele e manipulação cirúrgica. Entretanto, o tempo de extubação e a capacidade de responder aos comandos verbais foram superiores nos pacientes anestesiados com remifentanil, nos quais também foi detectado menor consumo de isoflurano.(12) No passado, a anestesia para cirurgia cardíaca, notadamente a de coronária, era fundamentada em doses elevadas de opióides, sendo carro-chefe o fentanil (50-100 µ/kg). O princípio era a proteção do miocárdio. Esta técnica demandava longo período de ventilação e de estada em UTI, que relacionava ao aumento dos gastos. Os programas subseqüentes em cirurgia cardíaca, denominados de fast-track, fundamentavam-se em reduzir o tempo de internação e permanência em UTI. Neste aspecto, a técnica de anestesia permitindo extubação precoce ocupava papel central. Esta deveria pautar-se em menores doses de opióides e agentes com rápida eliminação, como os inalatórios ou opióides de eliminação mais rápida. Neste ponto, o remifentanil, pelas suas aludidas características farmacocinéticas, poderia a vir ocupar um lugar importante. Vários protocolos envolvendo estudos controlados e multicêntricos foram realizados. Na maioria das vezes o agonista dos receptores µ comparado ao remifentanil foi o fentanil. Quanto à resposta hemodinâmica ao estímulo cirúrgico, alguns estudos apontaram o remifentanil como superior, embora fosse necessário o ajuste da infusão para mais, principalmente no momento da esternotomia. Em um estudo, o remifentanil na dose de 1-2 µ/kg/min associado ao propofol, em esquema de TIVA, foi efetivo em termos de analgesia intra-operatória e hipnose para anestesia em cirurgia para revascularização do miocárdio.(13) Quanto a extubação, embora os pacientes dos grupos anestesiados com remifentanil estivessem mais despertos, os diferentes estudos mostram que este item de avaliação foi prejudicado, pois a maioria das equipes devotadas à cirurgia cardíaca prefere aguardar algumas horas na UTI pela extubação, o que compartilhamos, para a que a descontinuação da ventilação mecânica seja feita com mais segurança.(3) Uma das justificativas pela manutenção da intubação e ventilação mecânica no pós-operatório imediato é o risco da isquemia miocárdica. A chamada isquemia do miocárdio pós-reperfusão é descrita duas a três horas após o by-pass; este período de algumas horas sob sedação e analgesia é considerado o mínimo de tempo como “protetor” para proceder a extubação. Neste sentido, analgesia eficaz com agente como o remifentanil, durante período de espera, é bastante atrativa.(1) O uso do remifentanil em obstetrícia pode, teoricamente, ter algumas vantagens sobre os demais opióides nas indicações precípuas de anestesia geral, existindo também alguns estudos em analgesia pré-parto controlada pela gestante. A possibilidade de usar a dose plena de um opióide com as características farmacocinéticas da remifentanil na gestante é muito vantajosa, caso da anestesia geral, pois a rápida depuração da droga pelo binômio mãe-feto permite recuperação da consciência e ausência de depressão respiratória em ambos.(14)

SEDAÇÃO EM UTI E ANALGESIA PÓS-OPERATÓRIA

Ao final da cirurgia é possível manter a analgesia com remifentanil se a infusão for continuada. É possível reduzir, ao término do procedimento, a infusão a taxas inferiores a 0,1 µg/kg/min e titulando-se a dose após o despertar (valores médios para analgesia pós-operatória 0,05 a 0,23 µg/kg/min), balanceando os efeitos entre analgesia satisfatória e respiração adequada. Existem relatos do uso venoso do remifentanil em analgesia pós-operatória seguindo-se a cirurgia ginecológica, ortopédica, torácica, abdominal e até cirurgia cardíaca.(15) Remifentanil, na técnica de analgesia pós-operatória, em alguns estudos foi combinado com antiinflamatórios não-hormonais e outros opióides.(16) O remifentanil tem sido utilizado como adjunto na sedação de pacientes graves internados em UTI, estando agora esta indicação na licença do produto. Em infusões prolongadas, o seu principal subproduto, ácido remifentanil, acumula-se atingindo concentrações de até 100 vezes superior que a molécula do remifentanil. Entretanto, como comentado anteriormente, o metabólito tem potência muito fraca e mesmo em infusão prolongada em pacientes com anúria o efeito no receptor µ é pouco evidente.

LIMITAÇÕES

Inúmeros ensaios clínicos comprovam a segurança e eficácia do remifentanil na manutenção da anestesia. Entretanto, seu custo relativamente elevado e rápida eliminação do plasma têm sido limitantes ao seu uso e ampliação do leque de indicações. Analgesia após o uso de remifentanil é mandatória, podendo ser obtida com a infusão do próprio agente em baixas doses ou com técnicas multimodais, com anestesia locorregional ou administração de morfina, 20 a 30 minutos antes do término do procedimento. No sentido de otimizar a dose e os custos, equipamentos de infusão programada (remifusor) considerando a farmacocinética para a remifentanil, têm sido apresentados.(17)

CONCLUSÕES

Atualmente, o desenvolvimento de hipnóticos e opióides pela indústria farmacêutica tem sido focado em agentes com ação ultracurta. Isto tem sido pressionado visando racionalizar recursos, pelo deslocamento nos países ditos desenvolvidos, das internações hospitalares cirúrgicas de menor porte e risco para cirurgias ambulatoriais sem internação. Em cirurgias que demandam intensa analgesia pós-operatória, mesmo as ambulatoriais, estes agentes, no caso os agonistas específicos de receptores µ de ação curta, precisam ser associados a técnicas de analgesia efetiva, para viabilizar o seu uso rotineiro.